A boneca
e o crocodilo
Fernanda Macahiba
Era uma vez um menino que morava numa casa
muito grande. Ele tinha uma irmã que colecionava bonecas chamada Desígnia. Essa
coleção enfeitava uma prateleira enorme no quarto que os dois dividiam. Certo
dia o menino descobriu na prateleira algo singular - um brinquedo simples,
feito de tecido – boneca de pano. Não era bonita como as belas companhias que
tinha na prateleira, que traziam cabelos bem cuidados, peles de porcelana e
vestidos de luxo. Era uma bonequinha bastante pequena, engraçadinha e
resistente. Sem maiores atrativos. E por esse motivo destoava completamente no
ambiente.
Por um a razão que me é desconhecida,
inesperada e repentinamente esse menino se apaixonou pela boneca. A irmã, que
observava os acontecimentos da vida do irmão, permitiu, certo dia, que ele
cuidasse da pequena de pano.
Nos primeiros tempos se dedicava constantemente
à boneca, que de maneira mágica, percebia nascer emoções humanas em seu
coração. Por vezes o menino pensou se poderia estar equivocado ao ver
alterações no semblante do brinquedo. Ao encostar o ouvido no peito do objeto
de seu divertimento, podia escutar, bem baixinho, o pulsar de um coração.
Secretamente, a boneca sempre soube da
existência do cérebro, que possibilitava o entendimento do mundo. Mas a conexão
cérebro – coração nunca existiu.
Muitos verões chegaram e se foram e um dia ela
percebeu que só restaram invernos em sua vida. O tempo cuidou de estragar o
tecido e emaranhar os cabelos. O menino, aos poucos, perdeu o encanto por
aquele brinquedo, relegando a ele um canto escuro na prateleira – para não
sentir a culpa daqueles que jogam fora um objeto que teve serventia num passado
remoto.
Esse foi o momento exato no qual o inverno se
instalou no coração da pequena - definitivamente. Nessa ocasião, principiou-se
um rompimento de um remendo que não era – até então - perceptível. E de dentro
daquela ‘descostura’ saiu um coração, que ficou preso apenas por um fio
dourado. Coração de pano, muito delicado e pequeno, ainda morno e pulsando
lentamente.
A boneca, que durante muitas estações conseguia
ver cores e sentir os cheiros e texturas do mundo, passou a perceber apenas
gradações de negro e cinza. Deixou de ser portadora das sensações humanas que
teimavam animá-la.
O menino, assustado, escondeu ainda mais o
artefato, o banindo para uma caixa escura -para que ninguém soubesse daquele
segredo. Desde esse dia nunca mais houveram notícias dele, que simplesmente
desapareceu.
Numa noite inesperada, enquanto a boneca,
através da janela, via as estrelas e não as sentia, dois pontos luminosos
apareceram na floreira. Após muitos anos sem emoções, se apavorou e teve medo.
O medo do perigo do sentir.
Nos dias subseqüentes as luzes misteriosas
reapareceram e por um instante ela ouviu um sussurrar musical que se confundia
com o vento frio que viajava mundo afora. Eram acordes semelhantes àqueles das
caixinhas de música antigas.
Se arrastando como pode, pulou da caixa e
tentou ver o que acontecia, mas a imobilidade imposta há tanto tempo não
permitiu. Estatelada no chão, sentindo solidão e tristeza, ela derramou suas
lágrimas. Chorou a dor do mundo e o coração voltou a bater gradualmente,
respeitando o ritmo natural da vida.
Intimidada, decidiu esperar. Enquanto aguardava
percebeu que as cores, aos poucos, voltaram. Reconhecia novamente o desejo, que
há muito havia se perdido, de pensar e elaborar emocionalmente.
Após alguns meses apreciando aquela música, já
habituada àquela rotina que havia enfraquecido a dor da solidão, sua vida
mudou. Imprevistamente e com apenas um pulo, adentrou no quarto um crocodilo
enorme, verde e marrom com mandíbulas imensas. Tinha aproximadamente 1,80m da
ponta do rabo até a cabeça.
A boneca nunca havia sentido tanto medo na
vida, até que percebeu, como por encanto, o objeto trazido pelo réptil – a
caixinha de música que havia preenchido de esperança cada noite em seu coração.
Relembrou as inúmeras vezes em que foi
rechaçada por ser apenas uma boneca de pano e decidiu que deveria ser gentil
com aquele animal um tanto assustador. Percebeu, ao olhar mais atentamente, que
era um tanto desengonçado – principalmente nas tentativas frustradas de
acostumar suas patas ao carpete espesso do quarto. Compreendendo o sobressalto
nos olhos da boneca, começou a dançar desordenadamente pelo cômodo. Ela começou
a rir gostosamente. O crocodilo, surpreso com as reações observadas no
semblante da pequena de pano, dançou ainda mais. Os dois sorriram. Nunca houve
sorriso mais verdadeiro que aquele.
Quando a música terminou contou toda sua
história. Morava num pântano não muito longe dali. Nadava trinta minutos e
caminhava por mais trinta até chegar àquela casa. E era muito difícil para um
animal daquele tamanho caminhar!
Tinha uma família enorme – crocodilo sempre
mora junto. Mas o lodo que cobria o pântano e os ajudavam a viver, tornou-se
rançoso e escasso e ele fugia, uma vez por semana, para o mundo que circundava
sua habitação.
Segundo o animal, havia uma senhora crocodila
que tinha muitos anos – tantos que ninguém sabia ao certo a data de nascimento
dela. Era muito respeitada e sua palavra era lei. Considerada a detentora da
sabedoria, sempre alertava os descendentes da impossibilidade de viver longe do
pântano por mais de quatro horas. Essa crença privava toda a família de um
conhecimento externo, mas os mantinha unidos. Explicou que crocodilo que fica
fora do pântano tem o couro ressecado e morre aos poucos. Portanto, ele
precisava voltar para casa depressa, para não desidratar.
A boneca entendeu a lei máxima que regia a vida
do pobre crocodilo e se satisfez com as poucas horas semanais que eram apenas
dos dois.
Aquelas noites foram memoráveis. Eles dançaram,
comeram, tomaram suco de melão, se abraçaram e o crocodilo conseguia fazer a
boneca rir cada vez mais e renascer. Discutiam juntos os problemas dos
crocodilos e das bonecas.
Ela contou a ele sua história. Que não tinha
família. Da perda do coração. Das tristezas. Ele prometeu a ela que nunca mais
sentiria solidão.
O crocodilo era muito discreto e já havia
percebido o fio dourado que segurava o coração da pequena. Tinha medo que
parasse de bater, pois ele crescia a cada dia.
Resolveu pedir para fazer uma costura –
cirurgia simples. Arrumaria carinhosamente o coração e o fio dentro do peito e
coseria o remendo. A boneca não sentiu medo algum, confiava nele. No encontro
seguinte, com uma linha quase invisível e pontos delicados, o crocodilo
consertou sua menina.
Sim, ela era dele, pensava. E ao mesmo tempo,
não era.
Os pontos foram cicatrizando e a menina a cada
dia ganhava cores e vida. Fascinado, o crocodilo dispensava a ela todo o tempo
que podia e muitas vezes chegou ao pântano num horário limite, à beira da morte
por desidratação.
Como podia um artefato viver com um animal? No
pântano ela não podia viver, pois a família do jacaré a expulsaria de lá,
certamente. E ele não poderia viver longe do lodo que hidratava seu couro.
Mas os dois não sabiam, dentro de sua
limitação, que havia lodo fora do pântano e aceitação dentro de um cômodo.
No começo, pensava o crocodilo, era movido
apenas pela curiosidade – queria inteirar-se da história daquela bonequinha
rota que estava fora do lugar. Era gasta. Comparada às bonecas da estante do
outro lado do quarto, era feia. Mas agora, tornara-se indispensável à vida
dele. Ela havia ensinado a ele que as patas servem para fazer carinho e que os tecidos
rotos podem se reconstituir através das palavras que modificam a percepção da
vida. E ele ensinou a ela o valor do otimismo e da fé.
Quando estavam juntos, as horas eram
preenchidas pela harmonia. Misteriosamente, a boneca começou a criar e ficou
mais bela que todas as outras, pois tinha vida quase humana.
Como podia um humano viver com um animal?
Os verões passaram e um dia o inverno tornou-se
insuportável novamente. O crocodilo decidiu que não podia ter duas vidas.
Resolveu estabelecer sua vida no lodo do pântano.
Deliberadamente, esperava a boneca adormecer e
retirava um ponto por vez daquele remendo. Acreditava que se o coração fosse
extraído ela poderia novamente voltar à caixa e viver artefatamente insensível.
Mas o crocodilo não sabia que pontos quase
cicatrizados doem mais que os recentes. A cada tesourada retirava não apenas
parte da linha, mas matava a boneca e a fazia sofrer imensamente. A pequena
suportava as dores sem pestanejar. Não mexia um músculo sequer. E fingia não
perceber o que acontecia. Chorava as dores copiosamente quando o crocodilo a
abandonava.
Quando a dor ficou insuportável, a boneca, num
ato de coragem, arrancou o coração com as próprias mãos e o plantou na floreira
que enfeitava a janela do quarto. Nessa época, o crocodilo havia espaçado suas
visitas e resolveu que iria morrer no pântano. Não sabia ao certo porque fazia
aquilo, apesar de perceber que o sentido da vida se esvaía. Não conseguia mudar
aquele hábito. Condenou-se a uma vida apenas. Uma vida de crocodilo eterno.
A boneca voltou a ser um artefato usado, mas
seu cérebro não parou de funcionar. Foi condenada a pensar e trabalhar sem
sentir emoção alguma. Seus olhos perderam todo o viço. Dedicou seus dias à
escrita das lembranças de sua vida dentro daquele quarto.
Após plantar seu coração, algo mágico aconteceu
- ele se desfaz em raízes e uma esperança em forma de folha verde brotou
daquela terra ressequida. Era verão. E ela entendeu – mas não pode sentir - que
os verões também podiam ser cruéis.
Aquela folhinha transformou-se numa planta que
se espalhou por toda a casa, cobrindo muros, as janelas e portas. A escuridão
habitava aquela moradia e a boneca não se importava mais. Como um autômato,
escrevia e escrevia sem parar.
Não suportando a separação, o crocodilo resolveu
visitar a boneca e se deparou com aquele emaranhado verde que obstruía as
entradas da casa. Oculto pela vegetação, deu cordas na caixinha de música e a
melodia ecoou pela barreira verde, mas não obteve penetração alguma.
Naquela ocasião o réptil chorou todas as suas
lágrimas. A boneca, ao longe, podia ouvir - mas não sentia. O cérebro
trabalhava compulsivamente e só restaram histórias em páginas amarelecidas pelo
tempo.
O crocodilo todas as noites visitava aquele
local para derramar suas lágrimas de arrependimento, sem ao menos saber que o
coração de sua amada, desfeito em raízes, nunca poderia ser recomposto.
Dizem que na primeira primavera brotaram flores
vermelhas e douradas. Resultado dos sentimentos bons que a boneca havia
plantado esperançosamente, durante anos, em seu coração. Mas ao simples toque
essas flores se desfaziam.
Dizem também que o crocodilo tentou, em vão,
colher essas flores que proporcionavam a ele átimos de segundo de sentimentos
de amor, antes de sumirem.
Essa história chegou até nós por concessão da
irmã do menino desaparecido. Desígnia, num dia de outono, autorizou a queda de
algumas folhas. Um forte vento soprou dentro daquele mausoléu desabitado e por
um pequenino vão deixado pelas folhas caídas, uma das páginas escritas pela boneca
foi levada diretamente às patas do crocodilo, que semanalmente visitava aquele
santuário.
O que havia naquela página? A história dos
dois.
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