Segunda
Noite, conto do terceiro chaik
Mil e Uma Noites
E QUANDO FOI NA SEGUNDA NOITE…
Doniazad disse à sua irmã Sherezade: “ó, minha
irmã, termina, para nós, eu te peço, o conto que é a história do mercador e do
gênio”. E Sherezade respondeu: De todo o coração e como homenagem devida – se
contudo, o rei permitir.” E então o rei disse: “Podes falar”.
Ela disse:
Contaram-me, ó Rei, que quando o mercador viu
chorar o bezerro, seu coração foi tomado de piedade e ele disse ao pastor:
“Deixa esse bezerro entre o gado.”
Quanta coisa! E o gênio admirava-se com a
história espantosa. Depois, o chaik, dono da gazela, continuou:
“Ó rei dos gênios, tudo isso aconteceu. E a
filha do meu tio, essa gazela que aqui está, também estava olhando e dizendo:
“É preciso sacrificar aquele bezerro, porque está no ponto!” Mas eu não podia,
por piedade, resolver-me a sacrificá-lo. E ordenei ao pastor que o levasse. Ele
o levou, saindo daí com ele.
No segundo dia, eu estava sentado quando o
pastor veio a mim e disse: “Ó, meu senhor, vou dizer uma coisa que te alegrará
e essa novidade me valerá uma gratificação.” Respondi: “Certamente.” Ele disse:
“Minha filha é feiticeira, porque aprendeu
feitiçaria com uma velha que morava em nossa casa. Ora, ontem, quando tu me
deste o bezerro, eu entrei com ele onde estava minha filha. Apenas o viu, ela
cobriu o rosto com o véu, e pôs-se a chorar, depois a rir. Em seguida me disse:
“Ó, pai, meu valor desceu assim tão baixo a teus olhos que deixas que homens
estranhos penetrem meus aposentos?”
Eu lhe disse: “Mas onde estão esses homens
estranhos? E por que choraste e em seguida riste?” Ela me disse: “Esse bezerro,
que está contigo, é o filho de nosso senhor, o mercador, mas ele está
encantado. E foi sua madrasta quem assim o encantou, e à mãe dele também. E foi
da sua cara de bezerro que não pude deixar de rir. E se chorei, foi por causa
da mãe do bezerro, sacrificada pelo pai.”
A essas palavras de minha filha fiquei
surpreso, e esperei a volta da manhã para vir te pôr a par.”
Assim que ouvi as palavras daquele pastor, saí
à pressa com ele, e me sentia embriagado sem vinho, pela quantidade de alegria
e felicidade que me vinham, por rever meu filho. Quando chegamos à casa do
pastor, a jovem desejou-me boas vindas e beijou-me a mão. Depois o bezerro veio
para mim e rolou a meus pés. Então eu disse à filha do pastor:
- É verdade o que me contas sobre esse bezerro?
- Sim, certamente, meu senhor! Esse bezerro é
teu filho, a chama do teu coração.
- Ó gentil e piedosa adolescente, se libertares
meu filho, dando-lhe novamente a forma de filho de Adão, te darei tudo quanto
tenho em gado e em propriedades que estão sob a guarda do teu pai.
Ela sorriu ao ouvir essas palavras e disse:
- Meu senhor, não quero riquezas, senão sob
duas condições: a primeira é casar com teu filho. A segunda é que me deixarás
enfeitiçar e aprisionar quem eu quiser! Sem o que não respondo pela eficácia de
minha intervenção contra as perfídias de tua esposa.”
Assim que ouvi as palavras da filha do pastor,
disse-lhe:
- Assim seja! E, além disso, terás as riquezas
que estão sob a guarda do teu pai. No que se refere à filha de meu tio, podes
dispor do seu sangue.
Assim que ela ouviu minhas palavras, apanhou
uma pequena bacia de cobre, encheu-a de água, e pronunciou sobre a água uns
encantamentos: depois aspergiu o bezerro, dizendo-lhe: “Se Alá te criou
bezerro, continua bezerro, sem mudar de forma! Mas se estás encantado, volta à
tua primitiva forma.”
A estas palavras, imediatamente o bezerro
começou a agitar-se, sacudindo-se até se tornar um ser humano. Então, atirei-me
sobre ele, beijando-o e abraçando-o.
Depois, disse-lhe: Ó, meu filho! Alá, senhor dos
destinos, reservou alguém para te salvar!”
Depois do que, ó bom gênio, casei meu filho com
a filha do pastor. E ela, por sua ciência de feitiçaria, encantou a filha de
meu tio e transformou-a nesta gazela que aqui está e que tu vês! E eu, ao
passar por este lugar, vi estas pessoas reunidas e perguntei-lhes o que faziam,
e soube por elas o que acontecera a este mercador que aqui está. E sentei-me
para ver o que podia acontecer. E esta é a minha história.”
Então o ifrit disse: “História muito espantosa!
Por isso dou-te o terço de sangue que pediste. Quanto aos outros dois terços do
sangue deste maldito, vou tomá-los, contra a vontade dele, nesta hora!”
Nesse instante, avançou o segundo chaik, senhor
dos cães negros, e disse:
CONTO DO SEGUNDO CHAIK
“Sabe, ó rei dos gênios, que estes dois cães
que aqui vês são meus irmãos e que sou o terceiro. Ora, logo que morreu, nosso
pai nos deixou de herança três mil dinares. Com minha parte, abri uma loja onde
comecei a vender e a comprar. Um dos meus irmãos se pôs a viajar para se fazer
comerciante e se ausentou por um ano, com as caravanas. Quando voltou, nada
mais tinha. Então eu lhe disse: “Irmão, eu não te aconselhei a não viajar?” Ele
se pôs a chorar, dizendo: “Ó, irmão, Alá é poderoso e permitiu que tal coisa me
acontecesse. Assim, tuas palavras, agora, não me podem mais ser de proveito,
pois que nada possuo.”
Então o levei comigo à loja e depois aos
banhos, dei-lhe uma bela roupa. Em seguida sentamos juntos para comer e eu lhe
disse: “Irmão, vou fazer a conta do lucro de minha loja, de um ano a outro e,
sem tocar no capital, dividirei este lucro contigo.” E assim fiz, e achei que
naquele ano tinha ganho mil dinares. Então agradeci a Alá, que é grande, e
fiquei muito feliz. Depois dividi o ganho em duas partes, entre meu irmão e eu.
E ficamos juntos durante dias.
Mas, de novo, meus irmãos resolveram partir, e
quiseram que eu partisse com eles. Porem não aceitei, e lhes disse: “Que
ganhaste vós, viajando, para que eu me sinta tentado a imitar-vos?”
Então eles começaram a insistir, mas sem
sucesso, porque não obedeci aos seus desejos. Ao contrário, continuamos a tocar
nossas respectivas lojas, vendendo e comprando durante um ano inteiro. Após,
eles recomeçaram a me propor viagem, e eu continuei a não aceitar, e isso durou
seis anos. Afinal, acabei concordando com eles e antes da partida, lhes disse:
“Meus irmãos, contemos o que possuímos em
dinheiro.” Contamos e achamos ao todo seis mil dinares. Então, lhes disse:
“Vamos enterrar a metade debaixo da terra para poder utilizá-la se uma
infelicidade nos acontecer. E tomemos cada um mil dinares para comerciar em
ponto pequeno.” Eles responderam: “Que Alá favoreça essa idéia!” Então tomei o
dinheiro, dividi-o em duas partes iguais, enterrei três mil dinares e quanto
aos outros três mil, distribui-os entre nós três. Depois, fizemos nossas
compras de mercadorias diversas, alugamos um navio para nele transportar nossas
aquisições, e partimos.
A viagem durou um mês inteiro, ao fim do qual
entramos numa cidade onde vendemos nossas mercadorias, e tivemos um lucro de
dez para cada dinar. Depois deixamos aquela cidade.
Ao chegarmos à beira-mar, encontramos uma
mulher, vestida de trajos velhos e usados, que se aproximou de mim, beijou-me a
mão e disse: “Meu senhor, podes me socorrer e prestar um serviço? Em troca,
saberei recompensar teu benefício.” Disse-lhe: “Sim, com certeza! Posso
socorrer e ajudar, mas não te sintas obrigada a mostrar reconhecimento.” Ela me
respondeu: “Meu senhor, então casa-te comigo e me leve para teu país, e eu te
devotarei minha alma! Fazei-me pois esse favor, pois sou daquelas que sabem o
preço de uma obrigação e de um benefício. E não te envergonhes de minha pobre
condição!” Quando ouvi aquelas palavras, tive por ela uma piedade cordial, porque
não há nada que não se faça, com a vontade de Alá. Levei-a, vesti-a com roupas
belíssimas, depois estendi para ela, no navio, magníficos tapetes e lhe fiz
acolhimento hospitaleiro e amplo, cheio de urbanidade. Em seguida, partimos.
E meu coração amou-a com grande amor. Eu não a
deixava, dia ou noite. E só eu, entre meus irmãos, podia possuí-la. Assim, meus
irmãos encheram-se de ciúmes e me invejaram também pela minha riqueza e pela
qualidade de minhas mercadorias. E atiravam avidamente olhares sobre tudo o que
eu possuía, e tramaram minha morte e o roubo de meu dinheiro; porque um demónio
fazia que vissem aquela ação sob as mais belas cores.
Um dia em que eu dormia ao lado de minha
esposa, aproximaram-se, agarraram-nos e nos atiraram ao mar. E minha esposa
acordou na água. Então, subitamente, ela se transformou em ifrita. Tomou-me em
seus ombros e me colocou numa ilha. Depois desapareceu todo o resto da noite,
voltando pela manhã, quando me disse: “Não me reconheces? Sou tua esposa!
Salvei-te da morte, com a permissão de Alá! Porque, sabes, sou uma ifrita. E,
desde o momento que te vi, meu coração te amou, simplesmente porque Alá assim o
quis. Quando me viste na pobre condição em que eu estava, tu assim mesmo me
quiseste e casaste comigo. Agora, em troca, salvei-te da morte.
Quanto a teus irmãos, estou enfurecida contra
eles, com certeza é preciso que eu os mate!”
A essas palavras fiquei estupefato, e agradeci
por seu ato, e lhe disse: “Quanto a meus irmãos, realmente, peço-te que não
faças isso.” Depois lhe contei o que tinha acontecido entre mim e eles, desde o
começo até o fim. Quando ouviu minhas palavras, ela disse: “Esta noite voarei
até eles e farei naufragar seu navio e eles perecerão!” Eu lhe disse: “Por Alá,
não faças isso, porque o Senhor dos provérbios disse: Ó benfeitor do homem
indigno! Sabe que o criminoso está suficientemente punido pelo seu próprio
crime! Ora, sejam eles o que forem, ainda assim são meus irmãos!” Ela disse: É
absolutamente preciso que eu os mate.” Implorei inutilmente a sua indulgência.
Depois do que ela me tomou sobre seus ombros e me pôs sobre o terraço de minha
casa.
Então, abri as portas de minha casa. A seguir,
retirei os três mil dinares do esconderijo. E abri minha loja, depois de ter
feito as visitas necessárias e os cumprimentos de uso. E fiz novas compras.
Quando a noite chegou, fechei minha loja e,
entrando em minha casa, encontrei estes dois cães amarrados a um canto. Quando
me viram, levantaram-se e começaram a chorar, mas imediatamente apareceu minha
esposa e disse: “Esses são teus irmãos.” Eu lhe disse: “Quem os pôs assim?” Ela
respondeu: “Eu. Pedi a minha irmã, que é bem mais versada do que eu em
encantamentos, e ela os pôs nesse estado, do qual só poderão sair ao fim de dez
anos.”
E é por isso, ó poderoso gênio, que vim ter a
este lugar, à procura de minha cunhada, para lhe pedir que liberte meus irmãos,
pois já se passaram dez anos. Quando aqui cheguei, encontrei este bom homem,
soube da sua aventura, e não quis sair até saber o seu término. Esta é minha
história!”
O gênio disse: “Realmente, um conto espantoso!
Por isso te concedo o terço de sangue, em resgate ao crime. Mas vou retirar
desse maldito que atirou os caroços, o terço de sangue que me é devido.
Então avançou o terceiro chaik, senhor da mula,
e disse ao gênio: “Eu contarei uma história mais maravilhosa do que as dos
outros dois. E tu me darás, como graça, o resto do sangue, em resgate do
crime.”
O gênio respondeu: “Que assim seja!”
CONTO DO TERCEIRO CHAIK
E o terceiro chaik disse:
“Ó sultão dos gênios! Esta mula que aqui está
era minha esposa. Uma vez fiz viagem e estive ausente dela por um ano inteiro.
Quando voltei, durante a noite, encontrei-a deitada com um escravo, sobre nosso
leito. Os dois ali estavam, e conversavam, requebravam-se e riam, se beijavam e
se excitavam, galhofando. Assim que ela me viu, levantou-se muito depressa e se
atirou sobre mim, tendo na mão uma tigela de água. Murmurou algumas palavras
sobre a tigela e disse: “Sai de tua própria forma e toma a imagem de um cão!”
E imediatamente me transformei num cão e ela me
expulsou de casa. E eu saí, e desde então, não cessei de errar, e acabei por
chegar à loja de um açougueiro. Aproximei-me e comecei a comer ossos. Quando o
dono da loja me viu, segurou-me e foi comigo para sua casa.
Quando a filha do açougueiro me viu, depressa
velou o rosto, por minha causa, e disse a seu pai: “É assim que se procede?
Vens com um homem e entras com ele em nossos aposentos!” Seu pai lhe perguntou:
“Mas onde está este homem?” Ela respondeu: “Esse cão é um homem. E foi uma
mulher que o encantou. Sou capaz de libertá-lo.” A essas palavras, o pai disse:
“Por Alá, conjuro-te a libertá-lo!” Ela tomou uma tigela e depois de ter
murmurado sobre aquela água algumas palavras, aspergiu-me com algumas gotas e
disse: “Sai dessa forma e volta à tua primitiva forma!” Então voltei a ser o
que era e beijei a mão da jovem, e lhe disse: “Desejo agora que encantes minha
esposa como fui por ela encantado.” Ela me deu um pouco de água e me disse: “Se
encontrares tua esposa adormecida, atira-lhe esta água e ela se transformará
naquilo que desejares!” Encontrei-a adormecida, joguei-lhe a água e disse: “Sai
dessa forma e transforma-te em mula!” No mesmo instante ela se transformou em
mula.
E é ela mesma que vês com teus próprios olhos,
ó sultão e chefe dos reis dos gênios!
Então o gênio voltou-se para a mula e
disse-lhe: “Isso é verdade?” E ela pôs a sacudir a cabeça e disse, por sinais:
“Oh! Sim! Sim! É verdade!
Toda aquela história fez que o gênio tivesse
prazer e emoção. E fez dom ao velho do último terço do sangue. Então...
Nessa altura, Sherazade viu aparecer a manhã e,
discreta, calou-se. Então sua irmã Doniazad disse: Ó, minha irmã! Como tuas
palavras são doces e gentis e deliciosas em sua frescura!” Sherazade respondeu:
“E isso não é nada se comparado com o que te contarei na próxima noite, se
estiver ainda viva, e se o rei houver por bem me conservar.” E o rei disse
consigo mesmo: “Por Alá! Não a matarei até ouvir a continuação de sua
narrativa, que é espantosa!”
Depois o rei e Sherazade passaram o resto da
noite enlaçados, até pela manhã. Depois do que o rei saiu e foi para a sala de
sua justiça. E o vizir e os oficiais entraram. O rei julgou, nomeou, demitiu,
deu ordens até o fim do dia, quando voltou ao seu palácio.
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