sexta-feira

A horta do Esteves, de António Torrado


A horta do Esteves

Dois coelhos do mato miravam, a uma respeitável distância, a horta do senhor Esteves.
- Que lindeza de couves! E as alfaces tão apetitosas... - dizia o coelho mais novo.
- Mas não te chegues - aconselhava-o o coelho mais velho. - O Esteves, se te apanha a roer-lhe alguma couve, não te perdoa.
- Uma folha só, que mal faz? - dizia o mais novo.
E ia-se chegando para a horta.
- Eu aviso-te. O Esteves não é para brincadeiras - gritava-lhe, já de longe, o coelho mais velho. - Quando era da tua idade, também me tentei e ainda guardo, de recordação, um chumbo na perna.
Mas o coelho mais novo já não o ouviu.
O mais velho, a internar-se no mato e a ouvir um estampido.
- A espingarda do Esteves - exclamou e fugiu a sete pés, embora não fosse nada com ele.
Não correu muito, porque o chumbinho antigo ainda se fazia sentir. Alapado num brejo, esperou.
O amigo ter-se-ia escapulido? Ou já estaria a ser esfolado, para, daí a pouco, entrar na panela, onde a cebola e o azeite faziam fe, fe, fe, na cantoria do refogado? Vida espinhosa a dos coelhos do mato, sobretudo a dos que não seguem os conselhos dos mais sabedores.
Nisto pensava o coelho velho, quando ouviu um gemido por perto. Era o aventureiro, que até ali se arrastara, a esvair-se em sangue.
- Quando fores da minha idade, também vais ter para contar aos mais novos - dizia-lhe o velho companheiro, enquanto com ervas frescas lhe estancava as feridas.
O coelhinho dava-se ao tratamento e só respondia com um ai, de quando em vez.
- Ao menos diz-me: as alfaces eram tão tenras como parecem? - perguntou o mais velho, a fingir indiferença.
- Mal provei - suspirou o coelhinho
- O que a nós nos vale é que o Esteves continua sem pontaria, senão nem sobrava um coelho que avisasse os mais novos - concluiu o velho coelho e concluiu muito bem.

António Torrado

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