O belo
adolescente triste
Mil e Uma Noites
Fica sabendo, ó meu irmão, que eu também sou
filho de rei, e minha história é tão incomum que se fosse escrita com uma
agulha no canto interno dos olhos serviria de lição a toda pessoa que gosta de
se auto aperfeiçoar. Nasci na terra de Kabul onde meu pai, Tigamos, é rei. Ao
mesmo tempo poderoso e justo, ele tem sob sua suserania sete reis tributários.
Desde a minha infância, meu pai cuidou que fosse instruído nas ciências, nas
artes e nos desportos, de maneira que aos quinze anos já era considerado um dos
cavalheiros mais finos do reino. Dirigia as caçadas e as corridas, sentado no
meu cavalo, mais veloz que um antílope. Certo dia, durante uma caçada, ao
crepúsculo, vi a poucos passos uma gazela airosa que, ao me ver, fugiu como uma
flecha. Segui-a com meus sete mamelucos até que chegamos a um rio caudaloso
onde esperávamos acuá-la e prendê-la. Ela, porém, se jogou no rio e nadou com
velocidade até a outra margem. Apeamos sem demora, confiamos nossos cavalos a
um dos mamelucos, saltamos num barco de pescar que estava lá e fomos em
perseguição à gazela. Mal atingimos o meio do rio, perdemos o comando da
embarcação e fomos levados pela correnteza. Passamos assim aquela noite e o dia
seguinte, incapazes de controlar a violência da água e do vento, receosos, a cada
minuto, de bater contra alguma rocha e morrer afogados. Foi só na manhã do
segundo dia que conseguimos desembarcar numa terra coberta de árvores e
atravessada por um córrego. Mas um homem refrescava os pés no córrego. Quando
nos viu, pulou, e seu corpo dividiu-se em dois na altura da cintura. Somente a
metade superior veio a nós. De repente, de todos os cantos do jardim,
apareceram outros homens iguais a ele. Jogaram-se sobre três mamelucos e
começaram a comê-los vivos. Eu e os três outros pulamos no barco, preferindo
ser engolidos pela água do que por aqueles monstros. Dois dias depois,
desembarcamos novamente numa terra coberta de árvores frutíferas e flores
aromáticas. Percorrendo este novo asilo, chegamos a um palácio vazio, com
pavilhões de cristal. Entramos. Na sala principal, havia um trono de ouro.
Sentei-me nele. Mas logo ouvimos um barulho parecido com o tumulto do oceano e
vimos uma procissão entrar no palácio, composta de emires, vizires e outros
notáveis, todos eles macacos. Uns eram anões; outros, gigantes. O vizir, um
macaco de estatura enorme, veio até mim, inclinou-se respeitosamente e informou
me, numa voz humana, que seu povo me reconhecia como rei e meus três mamelucos
como comandantes do exército. Informou-nos também que estavam prestes a atacar
seus vizinhos e inimigos, os Ghuls. Não tínhamos escolha. Montamos em três cães
enormes que nos trouxeram e encabeçamos a marcha das forças armadas. E chegamos
logo à terra dos Ghuls, os seres mais horrendos que já vira. Alguns tinham
cabeças de touro e corpos de camelo. Outros eram como hienas. Outros tinham
formas tão estranhas que não se assemelhavam a nada que conhecêssemos. Quando
os Ghuls nos viram, arremessaram sobre nós uma chuva de pedras, às quais nosso
campo respondeu da mesma forma numa batalha terrível. Eu e meus mamelucos
usamos nossos arcos e matamos muitos Ghuls, o que nos assegurou a vitória e
encantou meus novos vassalos. Incompreensivelmente, esses vassalos me
abandonaram após a vitória. E, montado no meu cão, recomecei a errar naquela
terra desconhecida. Um dia, cheguei à cidade dos judeus, que viviam lá desde o
tempo de Soleiman. Ao entrar, ouvi um pregoeiro gritar: "Quem quiser
ganhar mil libras de ouro e uma jovem escrava, trabalhando apenas uma hora, que
me siga." Segui-o. Na realidade, era o único a segui-lo. Levou-me a um
velho judeu que me recebeu com muita simpatia, deu-me um saco contendo mil
peças de ouro e me apresentou a uma jovem de grande beleza. - Fica com ela três
dias e três noites, disse-me. Depois, irás fazer o trabalho pelo qual estás
sendo pago. A moça era virgem. Passei com ela as únicas horas felizes de minha
vida. No terceiro dia, o velho judeu deu-me uma mula e uma faca e disse-me:
"Mata esta mula e separa-lhe a pele do corpo." Obedeci. Então, disse-me:
"Deita sobre esta pele e junta-a em volta de teu corpo. Um abutre gigante
vai levar-te no seu bico até o cume de uma montanha. Deixa-te levar sem esboçar
um movimento - senão serás morto na hora."No alto da montanha para onde o
abutre me levou, encontrei um palácio sumptuoso e alguém esperando por mim na
porta. "Descansa e diverte-te neste palácio, entrando nos aposentos que
quiseres com uma única excepção: o aposento que abre com esta chave de
ouro," disse-me o homem. E partiu. Passei dias naquele palácio vazio,
lutando contra a tentação de abrir a porta proibida. No fim, minha curiosidade
prevaleceu. Abri a porta proibida. Havia lá uma piscina e quatro moças nuas
tomando banho, como se quatro luas se estivessem refletindo na água.
Apaixonei-me por uma delas, denominada Chams, Sol. Esperei até que estivessem
todas dentro da piscina e, correndo mais rapidamente que a luz, apanhei a roupa
da jovem que amava. Disse-me: "Adolescente bonito, como ousas apoderar-te
do que não te pertence?" Respondi: "Minha pomba, sai da água e vem
falar comigo." Respondeu com suavidade: "Luz de meus olhos, se fizer
o que me pedes, estarei plantando uma faca no meu próprio coração." Assim
mesmo, consegui pegá-la e levá-la até o trono de rubi que estava lá. Vendo que
não poderia escapar, cedeu a meus desejos e, pondo seus braços em volta de meu
pescoço, deu-me beijo por beijo e carinho por carinho, enquanto suas irmãs
sorriam para nós e vigiavam para que não fôssemos surpreendidos. Momentos
depois, meu velho protetor abriu a porta e entrou. Levantamo-nos em sua
homenagem. E ele dirigiu a cada um de nós dois palavras carinhosas e
incentivou-nos a nos casar, dizendo a Chams: "Minha filha, este moço que
te adora é de ilustre linhagem. Seu pai é um rei. Farás bem em aceitá-lo por
esposo e eu persuadirei teu pai, rei Nasr, a abençoar-vos." - Ouço e
obedeço, disse a moça. No dia seguinte, apresentou-me ao pai, o rei Nasr, dono
dos génios, o qual me abraçou e ordenou grandes festas para celebrar o
casamento. Mandou também confeccionar um trono tão vasto que, nos seus degraus,
podiam ficar em pé duzentos génios machos e duzentos génios fêmeas. Sabendo que
meus pais estavam ansiosos por minha volta, mandou um exército inteiro de
génios levantar o trono em que minha mulher e eu estávamos sentados e carregá-lo
através do espaço até o palácio de meu pai em Kabul. A viagem, que leva
normalmente dois anos, foi feita em dois dias. Meus pais regozijaram-se e
celebraram minha volta e meu casamento com festas mais sumptuosas que tudo que
tinha sido visto até então. No fim do ano, que passou como uma primavera, minha
mulher quis rever seu pai e mãe. Concordei alegremente; mas, para minha
infelicidade, foi uma viagem azarenta. Subimos em nosso trono e nossos Afarit
carregaram-nos. Viajávamos de dia e descansávamos de noite. Uma noite, Chams
quis tomar banho num belo rio onde paramos. Tentei dissuadi-la, mas insistiu.
Estava no meio da água com suas escravas como a lua no meio das estrelas quando
lançou um grito lancinante e caiu morta. Uma serpente das águas, particularmente
venenosa, a mordera no calcanhar. Vendo Chams morta, desmaiei. E fiquei tanto
tempo desmaiado que julgaram-me morto. Mas, ai de mim, eu devia sobreviver à
minha amada para chorá-la e construir-lhe o túmulo que vês. Quanto a esse
segundo túmulo, é o meu próprio. Aqui vivo, chorando e rememorando com
nostalgia os anos que passamos juntos enquanto se esgota o tempo insuportável
que me separa do dia em que dormirei para sempre ao lado de Chams, longe do
reino a que renunciei, longe do deserto deste mundo. Nasceste de barro e
viraste homem. E aprendeste a retórica e as ciências. Depois, morreste e
voltaste à terra como se tivesses sido sempre barro.
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