A
história que é toda mentiras
Mil e Uma Noites
Certa noite, tomado de insónia, o califa Harun
Ar-Rachid mandou chamar o poeta Abu-Nauas e disse-lhe:
- Ó Abu-Nauas, estou agitado e oprimido. A
única coisa capaz de me divertir seria ouvir uma história tecida de mentiras da
primeira à última palavra. Se puderes improvisar essa história,
recompensar-te-ei generosamente; mas se puseres nela um grão de verdade sequer,
juro que farei com que a tua cabeça se separe do teu corpo.
Este estranho pedido fez o pobre Abu-Nauas
sentir-se bem indisposto, especialmente na região do seu pescoço. Mas ninguém
escapa à vontade de um califa. O poeta pediu vinho, bebeu e começou a falar:
"Sabei, ó Comandante dos Fiéis, que quando meu pai nasceu, minha avó
entregou-me a criança e me pediu que a distraísse. Levei meu pai no ombro e saí
para a rua. Mas meu pai chorava, e chorava, e chorava; e nada conseguia
acalmá-lo até que viu um cesto de ovos à porta de uma quitanda; então, sossegou
de repente e, indicando o cesto, disse: "Quero um desses!"
Comprei-lhe um ovo, e ele ficou radiante. Quando voltamos para casa, deixou
cair o ovo. O ovo quebrou-se, e dele saiu um pinto. E o pinto começou logo a
crescer. Cresceu tanto que se tornou igual a um camelo. Não podeis imaginar, ó
Comandante dos Fiéis, a quantidade de alimentos que esse pinto devorava. Meu
avô come-çava a se preocupar quando uma boa ideia assomou-lhe à mente. Disse-me
ele: "Meu filho, por que não levas esse galo pela manhã à floresta e o
carregas de lenha para o fogão? Assim o fiz; mas no dia seguinte, a ave amanheceu
doente, com um ferimento nas costas. E imaginai a nossa surpresa quando deste
ferimento vimos surgir, todo verde, um broto de nogueira. Dentro de pouco
tempo, o broto tornou se uma nogueira gigante, com doze ramos tão grandes e tão
esparsos que não era possível ouvir-se de um ramo para outro. Quando chegou a
época de colher as nozes, doze homens foram encarregados de proceder à
colheita. E quando acabaram, meu avô mandou-me ver se não tinham esquecido
algumas frutas entre a folhagem. Examinei a árvore e descobri, apenas, uma noz,
na ponta de um ramo. Apanhei o que me pareceu ser uma pedrinha e atirei-a de
encontro à noz. A noz caiu. Mas, para meu deslumbramento, o que julgara ser uma
pedra, era, na verdade, um torrão de lama seca que começou a se estender numa
gigantesca planície até cobrir todos os ramos da nogueira. Naturalmente, meu
avô ficou encantado de ver tantas terras adiciona-das às propriedades que já
possuía. Mandamos construir escadas e subir o gado para culti-var a nova terra;
e tão vasta era ela que precisamos de doze bois trabalhando um mês inteiro para
lavrá-la. Quando o solo ficou pronto, perguntamos a alguns lavradores qual
seria a plantação mais indicada. Todos aconselharam o sésamo. Semeamos a área
de sementes de sésamo. E mal tínhamos acabado de plantar, eis que vieram outros
lavradores e perguntaram o que havíamos semeado. Quando respondemos:
"Sésamo," puseram-se a rir, dizendo: "Sésamo! Onde se viu
plantar sésamo em terra virgem? Deveriam ter plantado melancia, que é a melhor
planta para o solo virgem." Meu avô olhou para mim com tristeza e
mandou-me apanhar todas as sementes de sésamo que tínhamos semeado na imensa
planície. Obedeci e apanhei todas as sementes sem um murmúrio sequer. Quando
tinha reunido todas elas, meu avô contou-as e achou que faltava uma, e
mandou-me procurá-la. Busquei-a por toda parte, mas não houve meio de
encontrá-la. À tardinha, porém, quando voltava para casa desesperado, vi uma
formiga arrastando a semente perdida. "Não me escaparás," gritei-lhe,
e tentei apoderar-me do sésamo, puxando-o para meu lado; mas a formiga não o
largava e o puxava também. Nenhum de nós se dava por vencido até que, por fim,
o sésamo partiu-se em dois e, por Alá, um rio de óleo de sésamo espalhou-se
entre a formiga e eu. Sem exagero, ó Comandante dos Fiéis, era um rio tão largo
e profundo quanto o próprio Tigre. Então, plantamos novamente a terra, desta
vez com sementes de melancia. E quando as melancias amadureceram, fui
encarregado de vigiá-las. Certo dia de calor, quis comer uma melancia. Passei a
vista por todo o campo e escolhi a maior de todas. Depois, saquei da minha
adaga e tentei abrir a melancia. Mas a minha adaga entrou na fruta e
desapareceu. Não podia eu segui-la, dentro da melancia, e deixar minhas
plantações sem vigia. E não queria perder meu facão. Pensei e pensei e então
tive uma ideia luminosa: decidi cortar a minha cabeça, com a minha espada, e
pô-la por cima da torre de vigia. Assim ficava livre para ir procurar a minha
adaga. Sem hesitar, pus meu plano em execução. Quando entrei na melancia,
achei-me dentro de uma cidade. Tudo nela era-me novo e desconhecido. As ruas
estavam cheias de gente. Todavia, olhando com atenção, verifiquei que todos
aqueles homens eram, como eu próprio, sem cabeça, embora parecessem acertar o
caminho sem dificuldade. Comecei a andar e, logo depois, dei com uma multidão
reunida em volta de um pregoeiro que perguntava em alta voz: "Quem perdeu
uma cabeça?" Quando me aproximei, vi que se tratava da minha cabeça.
Gritei-lhe: "Essa é a minha cabeça." Mas outros reclamavam a mesma
cabeça. Então o pregoeiro gritou: "Lançarei esta cabeça ao ar e, no
pescoço onde ela cair, ficará." A cabeça subiu no ar e, quando desceu,
veio directamente para o meu pescoço. Olhei em volta de mim e, pela vida do meu
senhor, não havia nem cidade, nem campo de melancia, nem nogueira, nem galo do
tamanho de um camelo; nem pai recém-nascido, nem nada de todas as coisas que
lhe contei, ó Príncipe dos Fiéis!" Harun Ar-Rachid ficou de tal maneira
satisfeito que desatou a rir. E acrescentou: "Não é sem razão que te
chamam o príncipe dos poetas. Nunca ouvi história tecida de tantas mentiras. E
embora pusesses nela alguma verdade lá pelo fim, fizeste-o com tanta habilidade
que não te pedirei conta disto e te compensarei conforme mereces." E Harun
Ar-Rachid premiou Abu-Nauas com um rico traje de seda e um saco cheiro de ouro.
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