Judar, o
pescador, e o saco encantado
Mil e Uma Noites
Conta-se, ó afortunado rei, que vivia certa vez
um mercador chamado Omar. Tinha ele três filhos: Salim I, Salim II e Judar, o
mais jovem. Havia-os criado até a maturidade; porém sem-pre preferiu Judar, o
que levava seus dois irmãos invejá-lo e odiá-lo. Quando Omar, que era muito
velho, notou esse ódio, receou que Judar fosse molestado por seus irmãos após a
sua morte e, na presença do cádi, partilhou seus bens em quatro partes iguais:
uma para cada filho e uma para a mulher. Após a morte do pai, os três irmãos
arruinaram-se em processos que Salim e Salim moveram contra Judar. Depois,
Salim e Salim maltrataram, burlaram e roubaram a mãe. E ela se refugiou junto a
Judar, o qual, embora empobrecido, a acolheu com todo carinho. Os dois Salim
caíram rapidamente na miséria, pois não conheciam pro-fissão alguma e eram
preguiçosos e malvistos. Procuraram a mãe, chorando. Uma mãe é sempre
compassiva.
Passou a servir-lhes as sobras da casa de
Judar, dizendo-lhes, todavia: "Comei rapidamente e saí. Se vosso irmão vos
surpreender aqui, poderá virar-se contra mim." Um dia, contudo, enquanto
comiam, Judar chegou. Mas em vez de zangar-se, sorriu para seus irmãos,
abra-çou-os e convidou-os a morar com ele. Sua mãe gritou: "Meu filho,
possa Alá abençoar-te e aumentar tua prosperidade: és o mais generoso de todos
nós." Judar ia cada manhã lançar sua rede ao mar, e viviam, ele, a mãe e
os irmãos, do produto de sua pesca. Certa vez, jogou a rede três dias seguidos
sem nada apanhar. No quarto dia, foi a uma praia mais distante no lago Karun e
enquanto se preparava para lançar a rede às águas, viu um mouro deslocan-do-se
em sua direção, montado numa mula. O mouro apeou, cumprimentou Judar e
dis-se-lhe: "Ó Judar, filho de Omar, preciso de teus préstimos. Se me
obedeceres, recolherás grandes vantagens. Serás meu amigo e o encarregado de
meus negócios." O jovem prome-teu obedecer. Disse o mouro: "Recita a
Fatiha para dar à tua promessa um caráter sagrado." Judar recitou a Fatiha.
Disse então o mouro: "Amarra meus braços atrás das minhas costas com estas
cordas, joga-me no mar e espera. Se as minhas mãos saírem da água em primeiro
lugar, lança tua rede e traze-me às costas. Pois não sei nadar. Mas se forem
meus pés que emergirem primeiro, considera-me morto. Leva então esta mula e
este saco ao mercado e procura por Chamaia, o judeu. Pagar-te-á cem dinares
pela mula. Teu único dever será guardar o segredo." Judar seguiu as
instruções do mouro, e ao ver os pés emergirem primeiro, montou a mula e foi ao
mercado onde localizou o judeu. O judeu pagou-lhe os cem dinares prometidos e
recomendou-lhe o segredo por sua vez. Judar levou muitas provisões para casa,
onde encontrou os irmãos famintos. No dia seguinte, voltou à mesma praia e foi
abordado por outro mouro igual ao primeiro; e tudo se passou exactamente como
no dia anterior. No terceiro dia, outro mouro apareceu, e Judar amarrou-o e
jogou-o às águas da mesma forma. Mas, desta vez, foram as mãos e a cabeça do
mouro que emergiram. Judar lançou sua rede e salvou o homem. Quando ele chegou
á costa, Judar reparou que ele segurava um peixe vermelho em cada mão.
"Por Alá," disse a Judar, "salvaste-me a vida." Retrucou
Judar: "Por recompensa, conta-me a história de teus dois irmãos afogados,
destes dois peixes e do judeu Chamaia."
- Como adivinhaste, os dois mouros que se
afogaram eram meus irmãos, chamados Abdel-Salam e Abdel-Ahad. Meu nome é
Abdel-Samad. O que tomaste por judeu é também meu irmão, um verdadeiro
muçulmano. Nosso pai, Abdel-Uadud, era um mágico poderoso. Ensinou-nos a magia,
a feitiçaria, a arte de descobrir e levantar os tesouros mais bem escondidos.
Tornou-nos capazes de mandar nos Jins, nos Marids e nos Afarit. "Todavia,
para levar-nos a competir entre nós e nos aprimorar na luta com o mundo, deixou
escondido o maior de todos os tesouros, o Chamardal, que contém três objectos
milagrosos: primeiro, um anel tão extraordinário que seu possuidor torna-se
dono do mundo, capaz de derrotar reis e sultões; segundo, um globo que permite
a seu possuidor visitar todas as regiões da terra sem sair de casa, pois, ao
virar o globo, cada região visada se desliga e vem até o dono do globo;
terceiro, um unguento que, passado nas pálpebras, permite ver os tesouros
escondidos em qualquer montanha ou planície. “Ganhará os três objectos
milagrosos de Chamardal aquele de nós que apanhar estes dois peixes vermelhos e
conseguir a coopera-ção de Judar, filho de Omar, que só pode ser encontrado nas
margens do lago Karun. Meus dois irmãos morreram na tentativa de apanhar estes
dois peixes. Eu os consegui e te encon-trei. Queres vir comigo ao Marrocos,
perto das cidades de Fez e Meknes, e ajudar-me a localizar e levar o tesouro?
Dar-te-ei tudo que me pedires e serás meu irmão para sempre. E poderás voltar
quando quiseres para teu país e tua casa."
- Ó meu senhor, respondeu Judar, tenho minha
mãe e dois irmãos a sustentar. Quem os ali-mentará se viajar contigo?
- Toma estes mil dinares e entrega-os a tua
mãe, e promete-lhe que estarás de volta dentro de quatro meses. Judar foi
entregar os mil dinares à mãe e obter sua bênção. Quando vol-tou, o mouro
colocou-o atrás de si nas costas da mula e voaram. No caminho, Judar sentiu
fome e disse ao mouro: "Senhor, acho que esqueceste de trazer provisões
para a viagem."
- Não preciso trazer provisões. Tenho este saco
encantado. Dele posso tirar todos os pratos que desejar. Estás com fome?
Judar reconheceu que estava. Num instante, o
mouro tirou do saco peixes, aves, carnes, frutas, doces, todos preparados com
requinte e servidos em pratos de ouro.
- Come, meu amigo, disse o mouro.
- Meu senhor, com certeza colocaste no saco
antes da viagem vários cozinheiros e muitos mantimentos.
- O saco é encantado, só isso! respondeu o
mouro com um sorriso. É servido por um Afrit que nos traria num piscar de olhos
até mil pratos árabes, mil pratos egípcios, mil pratos indianos, mil pratos
chineses.
No decorrer da viagem, o mouro perguntou a
Judar: "Sabes a que distância já estamos do Cairo?"
- Por Alá. não!
- Nestas duas horas, disse o mouro, já
percorremos um mês de viagem. Pois esta mula é uma jiniêh e viaja um ano num
dia.
Quando chegaram a Fez, foram à casa do mouro.
Descarregaram a mula. O mouro pronun-ciou umas palavras mágicas, e ela sumiu no
ventre da terra. Semanas depois, disse Abdel-Samad: "Chegou o dia em que
vamos recuperar o tesouro de Chamardal. Para tanto devemos superar diversas
provas, cada uma mais difícil que a outra.
- Sentes-te preparado?
- Sim, respondeu Judar.
Foram então ao lugar indicado no meio do
deserto onde, sob o efeito de palavras mágicas, portas misteriosas se abriram,
dando acesso a galerias, jardins, casas, palácios. Numa das casas, encontraram
a mãe de Judar. Era a primeira prova. Judar, seguindo as instruções de
Abdel-Samad, ordenou à mãe: "Despe-te."
- Meu filho, gritou a mulher, eu sou tua mãe.
- Despe-te, repetiu Judar. Senão, corto-te a
cabeça.
Na realidade, não era sua mãe e sim uma mera
aparição. Mas se ele tivesse fraquejado e tido pena dela, teria sido
imediatamente abatido por génios malvados. Após dias passados assim em meio a
aparições mágicas, provas imprevistas e outras manifestações de terror,
Abdel-Samad salvou o tesouro de Chamardal. Agradeceu a Judar pela indispensável
coope-ração e convidou-o a pedir o que quisesse. Judar pediu o saco encantado.
O mouro entre-gou-o sem hesitar e acrescentou: "Devo-te mais que este
saco. Leva também este outro saco, cheio de ouro e jóias, para que nunca mais
conheças a preocupação em tua vida."Judar agradeceu e, montado na mula
mágica, voltou para o Cairo e foi directamente à sua casa. E qual foi a sua
pena quando viu a mãe vestida de farrapos e sentada na soleira da porta a pedir
esmolas. Ela contou-lhe que seus irmãos a haviam maltratado e arrancado dela
todo o dinheiro que lhe dera. Vendo a casa vazia, Judar encheu-a imediatamente
de mantimentos, graças ao saco encantado. Quando Salim e Salim souberam da
volta do irmão e de suas riquezas, procuraram-no mais uma vez, e ele recebeu-os
mais uma vez festiva-mente. E viveram juntos, comendo o que lhes apetecesse.
Mas a natureza incuravelmente malvada daqueles dois irmãos prevaleceu de novo.
Observando e aproveitando a indiscrição da mãe, souberam do saco encantado e
roubaram-no. Depois, tramaram com o capitão de um navio, e este enviou seus
marinheiros para raptar Judar e jogá-lo no porão, acorrentado. Mas Deus teve
pena dele. Um mercador de Jedá passou por acaso no porão, viu Judar, gos-tou
dele e tomou-o a seu serviço numa peregrinação a Meca. Lá, outro acaso feliz o
pôs no caminho de Abdel-Samad, que estava cumprindo o dever da peregrinação.
Reconheceu-o e mostrou-lhe a bondade de um pai. Presenteou-o com quinhentos
dinares e ofereceu-lhe o anel mágico que fazia parte do tesouro de Chamardal.
Judar voltou para casa mais uma vez rico e honrado, e acolheu novamente seus
irmãos e perdoou-lhes todas as ignomínias. E, aproveitando o anel mágico,
mandou o Afrit edificar um palácio mais sumptuoso que o palácio real. Com o
tempo, o rei, Chams Ad-Daula, ouviu falar de Judar e do esplendor de seu
palácio. Um dia, foi visitá-lo. Por sua vez, Judar ouviu falar da filha do rei,
uma adoles-cente mais bela que a plena lra, e pediu-a em casamento. O rei
concordou. Os dois jovens foram unidos pelos laços do matrimônio e por uma
ardente paixão recíproca, que aumentou ainda mais a amizade entre Judar e Chams
Ad-Daula. Judar foi nomeado vizir. E quando o rei morreu, foi ele mesmo
proclamado rei, sendo sempre tolerante e generoso para com seus irmãos. Mas
estes nunca conseguiram superar sua inveja e sua perversidade. Um deles,
aproveitando a oportunidade de um banquete real do qual participava, colocou
veneno no prato do rei seu irmão e o matou. O povo chorou o rei bondoso Judar,
e os sábios disseram que ele foi vítima tanto de seus irmãos malvados quanto de
sua própria generosidade, excessiva e indiscriminada. Pois o provérbio diz:
"Faça o bem, mas saiba a quem." Num sen-tido aproximado, Kisra, o
grande rei da Pérsia, escrevera ao filho: "Meu filho, cuidado com a
compaixão: ela enfraquece o governo; e cuidado com a falta de compaixão: ela
provoca a rebelião."
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