A Fava, o Brinde e o Bolo-Rei
Dentro
do enorme bolo-rei encomendado para a noite de Natal as coisas estavam muito
longe de correr bem. Porquê? Porque a fava e o brinde tinham passado da fase de
amuo à de corte de relações devido às discussões antigas que sempre houvera
entre ambos.
A fava
entendia que o seu papel era, há muito, desvalorizado, fazendo ela, as mais das
vezes, o papel de má da fita. Sempre que alguém partia um dente a trincar uma
fatia ou ficava incomodado por não lhe ter saído o brinde, mesmo que ele fosse
insignificante, o comentário costumava ser:
—
Maldita fava, que não está aqui a fazer nada, que só causa problemas e que,
ainda por cima, nem serve para ser comida.
Por
isso, a fava exigira já ao pasteleiro que a embelezasse, revestindo-a, por
exemplo, de chocolate, o que sempre poderia torná-la mais apetecível e menos
desprezada. Mas o pasteleiro recusara-se a fazê-lo, em nome de uma velha
tradição de que se sentia guardião.
Por sua
vez, o brinde, que se encontrava numa posição favorável, sendo sempre o mais
procurado no bolo-rei, juntamente com algumas frutas cristalizadas, achava que
aquilo que se gastava com a compra bem podia ser aplicado na melhoria da sua
qualidade. Queria, por exemplo, deixar de ser feito em metal barato, do género
que escurece e enferruja rapidamente, e passar a ser feito em prata, o que lhe
daria o direito de não ser atirado para o fundo de uma caixa esquecida num
sótão, ou mesmo para o caixote do lixo.
Em
relação a esta exigência também o pasteleiro não se mostrava disposto a ceder,
afirmando, por exemplo:
— Se eu
fizesse o que me pedes, o brinde sairia muito mais caro do que o bolo-rei.
Eram
estes problemas que se encontravam na origem das discussões e dos conflitos a
que o pasteleiro se sentia incapaz de pôr termo. Por isso pediu a intervenção da
Fada do Natal, com o objectivo de a levar a pôr um pouco de bom senso nas
cabeças da fava e do brinde.
A Fada
do Natal apareceu na cozinha sem aviso e encontrou a fava e o brinde muito
amuados, cada um para seu canto, recusando-se a entrar naquele bolo-rei e, por
sua vez, o pasteleiro desesperado a desabafar:
— Se
eles se recusarem a colaborar, eu não poderei satisfazer a minha encomenda e,
assim, uma família grande passará a noite de Natal sem o bolo-rei que tanto
deseja.
Ao
escutar esta queixa, a Fada do Natal tomou uma decisão inesperada: puxou da sua
varinha mágica e transformou o brinde em fava e a fava em brinde, medida que
deixou ambos completamente confusos e sem saberem o que haviam de dizer.
Aproveitando
o silêncio da fava que agora era brinde e do brinde que agora era fava, o
pasteleiro pôs os dois dentro do bolo-rei, ainda em fase de massa mole, e
meteu-o dentro do forno. De lá de dentro saíam vozinhas dizendo coisas do
género: “Mas que grande confusão. Ainda há pouco tinha forma de fava e agora
olho para mim e vejo um brinde prateado” ou “ando eu a pedir para me fazerem em
prata e agora não passo de uma rija e triste fava”.
O
pasteleiro sentiu uma grande vontade de rir com a confusão que a sua amiga Fada
do Natal acabara de criar para o ajudar e por achar inútil toda aquela
discussão que prometia arrastar-se para além do que era razoável.
—
Obrigado, Fada do Natal, pela preciosa ajuda que me deste. O que posso agora
fazer para te compensar? — disse o pasteleiro.
— É
simples. Faz chegar o bolo-rei ao seu destino, para que aqueles que o esperam
não sejam prejudicados e, se tiveres outros bolos-reis que ninguém tenha
comprado, fá-los chegar às mãos daqueles que não têm casa nem família —
respondeu a Fada do Natal.
— Então
a fava e o brinde?
—
Ficarão assim até perceberem que, vistas do outro lado, as coisas são sempre
diferentes do que imaginámos. Talvez assim se acalmem e deixem de te causar
problemas inúteis.
José
Jorge Letria, A
Árvore das Histórias de Natal, Porto,
Ambar, 2006
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