A Filhó
Dourada
A história
que vou contar chama-se “A Filhó Dourada”.
Douradas,
muito douradinhas são elas todas, empilhadas na travessa, como um castelo por
conquistar.
As últimas
são as melhores. Têm mais açúcar, desfazem-se mal lhes tocamos… A gente pega
delicadamente numa das que sobraram, dá-lhe um impulso que a ponha a deslizar
na travessa, para ensopar bem e, num gesto rápido, sem pingar a toalha, mete-a
na boca. O estalar dela, de encontro aos nossos dentes, é música com açúcar.
Naquela
ceia de Natal, todos tinham comido filhós.
— Estão
uma delícia — comentavam.
E, porque
estavam uma delícia, não tinha sobrado senão uma, no fundo da travessa. Era uma
ilha minúscula e redondinha, rodeada por um mar de açúcar. Todos os olhos
fitavam a filhó, que estalava em reflexos de oiro. Uma tentação.
À roda da
mesa, diziam para o avô:
— Só ficou
uma filhó. Porque é que a não come?
O avô,
então, virava-se para a avó e segredava-lhe:
— Come tu,
anda lá.
A avó não
queria.
— Comam
vocês — dizia ela, apontando para a filhó e para os filhos.
— Eu já
comi muitas — desculpava-se um.
— Também
tenho a minha conta — dizia outro.
— Nem mais
um bocadinho — declarava um terceiro.
Parecia
que nenhum queria tomar a responsabilidade de comer a filhó. No entanto, ela lá
estava muito dourada, a recortar-se no meio da calda de açúcar. Apetecia mesmo
ver e… comer.
Mas, à
volta da mesa, não se decidiam. E a filhó, a última filhó, andava de boca em
boca, sem se fixar na boca de ninguém. De oferta em oferta, chegou a vez da tia
Luísa propor:
— Os
pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus sobrinhos chega primeiro à
filhó.
Os meninos
não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como seria de esperar. Cada um
ficou à espera do primo ao lado, e o primo ao lado do outro primo ao lado…
Fosse por acanhamento ou fosse por que fosse…
— Afinal
ninguém a come — observaram do outro extremo da mesa. — Esta filhó deve ser
mágica.
Olharam
uns para os outros e sorriram.
A ceia
estava no fim. Os meninos tinham sono. O avô cabeceava. Começou a ouvir-se o
arrastar das cadeiras. Era a debandada.
— Amanhã
se arruma a casa — disse a tia Luísa, e apagou a luz da sala de jantar.
Quando
todos já se tinham ido embora, a filhó, no lusco-fusco, ao meio da mesa,
começou a brilhar. Intensamente. Acreditem ou não, como se tivesse luz dentro.
Como um pequeno sol ou um bocadinho de oiro, a desfazer-se em açúcar.
António Torrado
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